Por Rodrigo Cury Bicalho e Leandro Issaka, do escritório Bicalho e Mollica Advogados

Publicado originalmente no Anuário Uqbar 2015: Finanças Estruturadas.

O ano de 2014 foi para o mercado de crédito imobiliário um ano de crescimento mais modesto. Já era notório que seria um ano bastante conturbado para o país por conta de eventos como Carnaval tardio, Copa do Mundo e eleições presidenciais. Ainda, acrescentou-se a esse cenário a queda de confiança do mercado na política econômica do país e o arrefecimento da economia.

Diante dessa perspectiva e da manutenção do interesse público no desenvolvimento do mercado habitacional, tendo em vista a existência de um déficit habitacional elevado, um prognóstico de insuficiência do direcionamento dos recursos de poupança e um ainda baixo volume de créditos imobiliários comparado ao PIB Brasileiro (estimado pela Associação Brasileira das Entidades de Crédito Imobiliário e Poupança - ABECIP em 9,7% do PIB em 2014), tivemos em 2014 uma relevante medida tomada pelo governo federal, por meio da Medida Provisória 656, de 07 de outubro de 2014, posteriormente transformada na Lei 13.097, de 19 de janeiro de 2015, que dentre outros assuntos criou a Letra Imobiliária Garantida (LIG).

Na contramão desse panorama, o mercado de securitização imobiliária, mais especificamente por meio de emissão de Certificado de Recebíveis Imobiliários (CRI), estabeleceu recorde em volume de emissão, acumulando um estoque que supera R$ 55,0 bilhões, conforme já mencionado pela Uqbar no Anuário de Securitização e Financiamento Imobiliário. Já como um produto consolidado no mercado de capitais e uma efetiva alternativa de financiamento para o setor imobiliário, principalmente em ramos específicos como o de loteamento, onde as instituições financeiras ainda tem pouca atuação, teve também pequena alteração trazida pela Medida Provisória 656 que foi mantida na Lei 13.097.

Já no ano de 2015, desde a posse do atual ministro da Fazenda, Joaquim Levy, no dia 05 de janeiro, sob o pretexto de “atrair poupança de longo prazo”, o Ministro Joaquim Levy falou da possibilidade de revisão dos benefícios fiscais sobre os rendimentos das Letras de Crédito Imobiliário (LCIs).

Nesse contexto, vamos analisar adiante esses títulos que permeiam o mercado de finanças estruturadas do setor imobiliário brasileiro, onde abordaremos as evoluções normativas e acontecimentos relevantes ocorridos ao longo de 2014 e início de 2015, envolvendo o CRI e a LCI que são os principais títulos lastreados em recebíveis imobiliários no Brasil, bem como a LIG que vem como uma promessa à fonte alternativa à poupança na captação de recursos para o mercado imobiliário.

 

LETRA IMOBILIÁRIA GARANTIDA: INOVAÇÃO E NECESSIDADE DE AJUSTES

Após muitas alternativas estudadas em sua fase de concepção, a Letra Imobiliária Garantida, tratada como “LIG” no próprio texto legal (Lei 13.097 em 19 de janeiro de 2015), foi criada para fazer frente ao possível esgotamento dos recursos dos depósitos em caderneta de poupança para expansão do financiamento habitacional. Esse novo título escritural (deve ser registrado em depositário central autorizado) veio complementar o rol de títulos financeiros (Letra Hipotecária e LCI) e de mercado de capitais (CRI) à disposição dos investidores com base em créditos imobiliários. Essa disponibilidade de títulos semelhantes é reconhecida inclusive na exposição de motivos da MP 656, que prevê até mesmo a possibilidade de substituição da LCI, por exemplo, pelo novo título instituído. 

Apesar da Lei n° 13.097 já ter sido promulgada e estar em vigor quanto aos artigos referentes à LIG desde então, esta ainda está pendente de regulamentação pelo Conselho Monetário Nacional (CMN), nos termos do art. 91 da referida lei, e sua distribuição e oferta pública ainda estão pendentes de regulamentação pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM).

Características da LIG

A LIG, que teve como modelo inicial os covered bonds europeus, corresponde a título de captação de recursos emitido por instituições financeiras, lastreado principalmente, mas não exclusivamente, em créditos imobiliários, porém garantido pela própria instituição emissora. Ou seja, se os créditos imobiliários que lastreiam a LIG não forem adimplidos, a instituição financeira garante o pagamento aos investidores. A instituição emissora da LIG tem ainda obrigação de realizar o reforço ou substituição das garantias, caso estas se mostrem inadequadas, insuficientes, ou ainda sejam liquidadas antecipadamente.

Assim como no CRI, conta ainda a LIG com os institutos do patrimônio separado e instituição de regime fiduciário sobre a carteira de ativos, sendo o agente fiduciário uma instituição financeira ou entidade autorizada para esse fim pelo Banco Central do Brasil (Banco Central) e os beneficiários os titulares das LIG.

Neste sentido a LIG é título de emissão exclusiva de instituições financeiras, assim como a LCI, mas conta com os mesmos mecanismos de blindagem da carteira lastro que o CRI, título de emissão exclusiva de companhias securitizadoras. Outra característica da LIG é que a Lei 13.097 afastou expressamente a aplicação do disposto no art. 76 da Medida Provisória nº 2.158-35, de 24 de agosto de 2001, que dispõe que “as normas que estabeleçam a afetação ou a separação, a qualquer título, de patrimônio de pessoa física ou jurídica não produzem efeitos com relação aos débitos de natureza fiscal, previdenciária ou trabalhista, em especial quanto às garantias e aos privilégios que lhes são atribuídos”.

Por força do afastamento da aplicação do art. 76 da Medida Provisória nº 2.158-35, os Créditos Imobiliários e os recursos deles decorrentes, objeto do patrimônio separado sob o qual foi instituído o regime fiduciário, não poderão ser alcançados por credores fiscais, trabalhistas e previdenciários da entidade emissora ou de outras empresas pertencentes ao mesmo grupo econômico da emissora, trazendo grande segurança jurídica aos investidores.

Assim como o CRI e a LCI, a LIG, por ser um título de fomento do mercado imobiliário, tem benefício fiscal como incentivo ao seu desenvolvimento. Os rendimentos e ganhos de capital da LIG são isentos de impostos sobre a renda para os beneficiários que são pessoas físicas residentes no Brasil ou residentes ou domiciliados no exterior, com exceção aos casos de residência ou domicílio em paraíso fiscal, para os quais a tributação será aplicada à alíquota de 15%.

Não obstante, esse título imobiliário, quanto à regra de composição de sua carteira por créditos imobiliários, teve um tratamento diferente dos títulos imobiliários existentes, conforme tratado a seguir.

Composição da Carteira

Teve a LIG um importante ajuste na conversão da referida medida provisória na Lei 13.097, sobre a composição da carteira de ativos, uma das principais questões que, em nossa opinião, carecia de regulamentação no texto da MP 656. Na forma como constava no texto da Medida Provisória 656, não havia qualquer obrigatoriedade da emissão ser efetivamente lastreada em créditos imobiliários. Determinava o art. 21 da referida MP que poderia compor tal carteira não apenas créditos imobiliários, mas também títulos emitidos pelo Tesouro Nacional, instrumentos derivativos contratados por meio de contraparte central garantidora e ainda “outros ativos” que sejam autorizados pelo CMN, sem trazer qualquer limite mínimo ou máximo na composição da carteira de ativos, deixando tal determinação, no art. 22, para regulamentação posterior, pelo CMN, inclusive quanto a “características dos ativos da carteira” ou a “participação de tipos de ativos”.

Não por menos, a única emenda relevante no texto sobre a LIG verificada na Lei 13.097 refere-se à inclusão de um parágrafo 3º ao artigo 22 da MP 656, replicada no parágrafo 3º do artigo 67 da referida Lei, estipulando que no mínimo 50% (cinquenta por cento) da carteira de ativos da LIG deve ser representada por créditos imobiliários. Assim, o legislador não deixou a cargo do CMN a incumbência de se definir o percentual mínimo de créditos imobiliários que devem compor a LIG, o que gera certa segurança jurídica.

Ainda assim, há que se ponderar se um título onde metade de seus ativos não são imobiliários atinge a função social e econômica, sob a égide da qual foi criado, visto que a isenção de IR, conforme tratado acima, é um incentivo governamental para fomentar o mercado imobiliário.

Neste cenário, os recursos da LIG têm sua capacidade de fomentar a produção imobiliária bastante diminuída e pode ser ainda pior se permitir que os bancos invistam ainda menos do que captam em poupança na produção de moradias. Tudo isso sob a bandeira e com os benefícios de incentivo ao setor imobiliário.

Seria coerente se a LIG seguisse o mesmo racional do CRI e da LCI, que gozam do mesmo benefício fiscal para incentivo do setor imobiliário, mas devem ser lastreados 100% em créditos imobiliários. Há aqui uma grande discussão sobre o conceito de créditos imobiliários, sendo bem diferente o conceito da LCI, que está expresso na Circular do Banco Central nº 3.614, de 14 de novembro de 2012, e o da CVM, que não é definido em lei ou regulamentação da CVM, tendo seu conceito delineado pelo mercado e por decisões da CVM, seja em consultas formais ou decisões colegiadas (não é intenção deste artigo discutir tais conceitos).

Em textos anteriores da redação da MP 656, quando ainda era um projeto de lei para se criar o Covered Bond brasileiro, havia a sugestão de que os créditos imobiliários representassem ao menos 85% do valor da carteira. Com isso, sem impedir que outros títulos possam compor o conjunto de ativos, estaria assegurada a natureza do investimento em crédito imobiliário.

Agora, o percentual de 50% de investimento em créditos imobiliários não tem qualquer precedente em outros títulos imobiliários incentivados. Há talvez um paralelo com a regra de imunidade de Imposto de Transmissão de Bem Imóvel (ITBI) sobre a transferência de imóveis em integralização de bens em pessoa jurídica, nos termos do art. 156, parágrafo 2º, inciso I, da Constituição Federal, e do Código Tributário Nacional, em seus artigos 36 e 37, onde tal imunidade não se aplica quando mais de 50% da receita operacional da pessoa jurídica, nos últimos 2 anos, decorrer de atividades imobiliárias lá mencionadas. Entretanto, são questões muito distintas, e a regra sobre imunidade de ITBI não deveria servir de parâmetro para o limite mínimo de créditos imobiliários para que um título seja taxado como imobiliário ou não.

Pode sim haver benefícios para o investidor da LIG pelo fato da sua carteira ser mais flexível, principalmente por questão de proteção e pulverização de riscos, não ficando atrelado tão somente ao mercado imobiliário. Entretanto é necessário que sejam evitados abusos.

Vale lembrar que enquanto se cria um título incentivado onde apenas metade do seu valor fomenta efetivamente o mercado imobiliário, há indícios de que a nova equipe econômica do Governo poderá retirar tal benefício da LCI, título que é 100% lastreado em créditos imobiliários. Se isso se concretizar, pode se criar uma clara distorção à política de estímulos ao mercado imobiliário.

Esperamos que o CMN seja tão diligente na regulamentação e na fiscalização desse título, quanto tem sido a CVM com relação aos Certificados de Recebíveis Imobiliários, buscando estar sempre alinhada com a finalidade precípua do papel que é o de fomentar o desenvolvimento do mercado imobiliário e fazer frente a um possível esgotamento dos recursos de poupança.

 

CRI

Como já mencionado acima, a emissão de Certificados de Recebíveis Imobiliários estabeleceu recorde em volume em 2014. E com um cenário de aumento da taxa de juros do crédito imobiliário, e até de certa restrição dos bancos na concessão do “plano empresário”, a securitização começa a se tornar viável como alternativa para os empreendedores imobiliários na área de incorporação. Não obstante, para setores do mercado imobiliário como o de loteamento, a securitização de créditos continua sendo uma das principais alternativas de funding. Deste modo, o mercado de securitização imobiliária vem demonstrando que cumpre sua função de alternativa de financiamento imobiliário via mercado de capitais.

Por meio da Lei 13.097, houve uma alteração no artigo 41 da Lei 9.514/97, atribuindo poderes ao CMN para regulamentar o disposto na Lei 9.514/97, inclusive estabelecer prazos mínimos e outras condições para emissão e resgate de CRI e diferenciar tais condições de acordo com o tipo de crédito imobiliário vinculado à emissão e com o indexador adotado contratualmente. A redação anterior desse artigo delegava tal direito ao Ministro de Estado da Fazenda. Vale lembrar que o CMN é o órgão superior do Sistema Financeiro Nacional, composto pelo Ministro da Fazenda (presidente), Ministro do Planejamento e Presidente do Banco Central, sob o qual estão o Banco Central e a CVM.

Fica aqui uma dúvida do porquê dessa alteração legal. Poder-se-ia alterar tantas outras regras para se aperfeiçoar o mecanismo de securitização, como replicar a não aplicabilidade do art. 76 da Medida Provisória nº 2.158-35, mas optou-se a dar um poder ao CMN para regulamentar um valor mobiliário, cuja competência, desde a promulgação da Lei 10.303/01, é da CVM.

 

LCI

Em relação às LCIs não houve em 2014 alteração regulamentar relevante, mas dado o seu crescimento em volume, chegando em janeiro de 2015 a um estoque de R$ 160 bilhões, tornou-se o título imobiliário de maior expressividade no mercado financeiro brasileiro.

Diante disso e da atual política econômica, que visa suspender desonerações, torna-se palpável a possibilidade de revisão dos benefícios fiscais sobre os rendimentos das LCIs levantada pelo atual ministro da Fazenda, Joaquim Levy, sob o argumento, além de arrecadatório, da necessidade de “atrair poupança de longo prazo”.

Essa revisão, que seria bastante indesejável para o mercado, poderia implicar na revogação integral da isenção do imposto sobre a renda de pessoa física (IRPF) sobre esses rendimentos ou a aplicação escalonada do imposto sobre a renda de acordo com o prazo do investimento, estimulando a compra de papéis de longo prazo, em coerência com as recentes declarações oficiais do Ministro da Fazenda.

 

CONCLUSÃO

Não há dúvidas de que o ano de 2014 foi um ano de grandes mudanças no que tange a regulamentação do crédito imobiliário no país, principalmente com a criação da LIG, considerado por muitos como um marco regulatório, ainda pendente de uma regulamentação pelo CMN e pela CVM.

Cumpre aos participantes deste mercado continuar o diálogo com os órgãos reguladores para que essa regulamentação traga maior segurança jurídica e transparência tanto para o mercado imobiliário quanto para os investidores e, principalmente, seja efetiva na consecução do seu objetivo que é o de desenvolver o mercado habitacional e imobiliário como um todo.

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