No dia 2 de agosto o Banco Central (BACEN) decretou a liquidação extrajudicial de mais um banco de médio porte, o Banco Rural (Rural). Como de praxe, imediatamente após o anúncio do regulador, iniciaram-se as especulações sobre a magnitude do impacto desta ação junto a investidores de diversos títulos e fundos ligados ao banco. Lembranças frescas e bem atuais dos problemas experimentados por investidores em operações de outro banco de médio porte, o Banco BVA (BVA) – instituição em processo de liquidação extrajudicial desde 19 de junho de 2013 –, fizeram com que uma associação quase que imediata existisse entre os problemas destes investidores com os que serão enfrentados por aqueles.

De fato, essa associação é provavelmente válida para os investidores em títulos de crédito emitidos por esses dois bancos. A situação, porém, deverá ser diferente entre os detentores de cotas de Fundos de Investimento em Direitos Creditórios (FIDC) que adquiriram créditos originados e cedidos por estes bancos, apesar dos fundos terem em comum o tipo de ativos investidos e a estrutura de cobrança.

Tanto o BVA quanto o Rural cediam aos seus respectivos fundos direitos creditórios decorrentes de empréstimos e financiamentos concedidos a seus clientes pessoas jurídicas por meio de cédulas de crédito bancário (CCB). O Rural vendia esses ativos para o FIDC Rural Premium (Premium) enquanto que o BVA tinha como compradores os FIDC Multissetorial BVA Master  (Master), FIDC Multissetorial BVA Master II (Master II) e FIDC Multissetorial BVA Master III (Master III). Por sua vez, ambos os bancos atuavam como agentes de cobrança e os recursos provenientes do pagamento destes títulos eram depositados em suas contas antes da transferência para as contas dos FIDC.

As semelhanças, no entanto, parecem terminar por aí. A análise da situação baseada nas informações públicas divulgadas pelos administradores destes fundos sugere que seus investidores estão expostos a riscos diferentes e que as respectivas histórias poderão ter epílogos diferentes.  A Figura 1 compara o comportamento do Atraso Normalizado para os fundos acima citados usando como base o número de meses que antecedem a ação pública interventora do BACEN nos respectivos cedentes desses fundos – no caso do BVA a data da ação pública é a de intervenção (19/10/2012) e a do Rural a de liquidação (02/08/2013).

Figura 1 – Evolução do Atraso Normalizado do Master, Master II, Master III e Premium nos meses que antecedem ação do BACEN nos respectivos cedentes


O gráfico da figura deixa claro que, diferente dos fundos do BVA, o Premium mantinha um nível de inadimplência relativamente estável nos últimos meses que antecederam a liquidação de seu cedente. Este bom desempenho do fundo do Rural foi consequência da existência, até dias antes da liquidação do banco, de um importante reforço de crédito: as recompras de créditos inadimplentes. A Figura 2 apresenta a evolução mensal da parcela de ativos do fundo do Rural que era recomprada pelo cedente em relação ao montante total de direitos creditórios. Mais precisamente, foi calculada a razão percentual entre o montante de créditos recomprados em cada mês e o montante de direitos creditórios no mês anterior para os doze meses anteriores à ação do BACEN no Banco Rural.

Figura 2 – Evolução das recompras de créditos inadimplentes em relação ao volume total de direitos creditórios do Premium (%) nos meses que antecederam a ação do BACEN no cedente do fundo


De acordo com os Informes Mensais publicados pelo administrador dos FIDC do BVA e relatórios das agências que atribuíram classificação de risco às cotas desses fundos, estes praticamente não apresentavam recompras – as últimas realizadas foram em fevereiro e abril de 2012 para o Master III. A ausência de recompras regulares poderia justificar o desempenho dos fundos, que se deterioraram à medida que se aproximou a data de intervenção do banco. Porém, sabe-se hoje que parte da “inadimplência” dos fundos do BVA teve origem não em questões de natureza creditícia, mas operacionais, mais especificamente no repasse do pagamento dos direitos creditórios aos detentores destes, os fundos.  Como no passado o administrador desses fundos qualificou a questão do redirecionamento dos recursos como inadimplência, risco associado à exposição ao crédito, fica comprometida a análise histórica do desempenho dos direitos creditórios desses fundos.  Para mais informações sobre os problemas dos FIDC do BVA, ler o artigo “FIDC do BVA: Risco de Crédito ou Operacional?”).

Com a liquidação do Rural, é bem possível que a situação creditícia do Premium inicie um processo de deterioração. Porém, até o momento, não existem informações quanto a problemas de natureza operacional envolvendo redirecionamento dos recursos dos direitos creditórios pelo antigo cedente.

Por outro lado, sendo um condomínio aberto, diferentemente dos fundos do BVA que eram todos fechados, o Premium tinha como intrínseco o risco de liquidez. Este risco passou a ser significativo, de fato, o mais relevante, a partir do anúncio da liquidação do Rural. Tal como ocorrera no final de 2010 com os fundos do Banco Panamericano. (Para mais informações, ler o artigo “FIDCs do Panamericano sofrem resgates acima de meio bilhão de reais em novembro”), um resgate massivo de cotas imediatamente após o anúncio de liquidação de seu cedente poderia desequilibrar as contas do fundo.

Tentando minimizar esse risco, que poderia colocar cotistas da mesma classe em situações opostas, o administrador do fundo, a Petra Personal Trader CCTVM (Petra), divulgou no dia 6 de agosto fato relevante comunicando a suspensão das atividades do FIDC, bem como dos pagamentos e resgates. Além disso, no dia seguinte ao comunicado do fato relevante, convocou assembleia geral extraordinária dos cotistas do fundo para o dia 19 deste mês. Na reunião, cotistas terão que deliberar sobre (i) a liquidação antecipada do FIDC; e (ii) “as medidas que serão adotadas visando a preservar os direitos, garantias e prerrogativas dos Cotistas”.

Certamente o segundo ponto desta agenda será o mais importante desta reunião. Sendo um fundo aberto, o evento da liquidação do seu cedente poderá colocar em situações bem diferentes investidores da mesma classe. Tendo uma base razoavelmente pulverizada de investidores seniores – de acordo com o ultimo informe mensal, publicado em junho, o fundo contava com 108 investidores de cotas seniores –, é praticamente impossível que todos tenham requisitado o resgate de suas cotas antes do dia 6. Logo, caso não haja acordo entre os cotistas, corre-se o risco de alguns investidores receberem a totalidade ou uma parte de seus investimentos, enquanto que outros continuarão aguardando pela geração de caixa do FIDC, leia-se amortização ou venda dos direitos creditórios do fundo, para reaver seus investimentos.

Como visto, a liquidação de dois cedentes de FIDC, ambos bancos de médio porte, expuseram investidores em cotas destes fundos a riscos diferentes.  Em comum os eventos trazem para o mercado o aprendizado e a necessidade do constante e incansável aprimoramento do ambiente no qual o mercado de securitização opera no país.

A situação inusitada, que ocorre neste caso em função de se tratar de um fundo aberto e que poderá colocar em situações diametralmente opostas investidores da mesma classe, merece a atenção do regulador e dos participantes do mercado. Uma boa prática a ser adotada pelo mercado de FIDC em uma situação como essa seria a imediata suspensão das atividades do fundo, incluindo pagamentos a cotistas e terceiros, até que o condomínio decida o que fazer para preservar os direitos, garantias e prerrogativas de todos os cotistas do fundo. Por sua vez, a mitigação do risco operacional que foi observado nas operações dos FIDC do BVA vai além da questão da segregação das responsabilidades e funções, bem encaminhada a partir da publicação da Instrução CVM nº 531. Esta passa também pela divulgação de informação consistente e confiável sobre o desempenho dos direitos creditórios dos fundos.
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